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Jung e a Parapsicologia

JUNG E A PARAPSICOLOGIA

 Texto de PAULO URBAN, publicado na Revista Planeta, edição nº 332, maio/2000 

(Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento)

“A relação médico-paciente, principalmente quando intervém uma transferência deste último ou uma identificação mais ou menos inconsciente entre médico e doente, pode conduzir ocasionalmente a fenômenos de natureza parapsicológica”, afirmou o renomado psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) em sua autobiografia intitulada Memórias, Sonhos e Reflexões.

Joseph Banks Rhine

Joseph Banks Rhine

A vida de Jung, podemos constatar, esteve toda ela marcada por experiências pessoais a envolver fenômenos de clarividência, sonhos premonitórios e psicocinesia (ação do psiquismo sobre o meio e a matéria), que obrigatoriamente se constituem em peças fundamentais a servir na composição de toda sua psicologia. Jung considerava tão importante a parapsicologia como ciência emergente e revolucionária de seu tempo, capaz de investigar os inúmeros fenômenos que desafiavam (e ainda desafiam) a psicologia acadêmica, que chegou a propor o nome do estadunidense Dr. Joseph Banks Rhine (1895-1980) para o Prêmio Nobel, visto que seus trabalhos experimentais desenvolvidos nos anos 50 no laboratório da Universidade de Duke, em Durham, na Carolina do Norte, E.U.A., provavam estar o ser humano dotado de capacidades “extra-sensoriais” que exigiam maior atenção da comunidade científica.

Carl G. Jung

Carl G. Jung

Jung cita, por exemplo, o caso de um paciente seu cuja depressão severa ele tratara. Havendo o rapaz se casado logo após o tratamento, Jung orientou sua esposa quanto às prováveis recidivas da doença, pedindo a ela que o avisasse prontamente caso observasse alguma piora no estado psíquico do marido. Mas, conforme nos relata o médico suíço, a tal mulher não o via com bons olhos, tomando-o mesmo por “uma pedra em seu sapato”, talvez enciumada, explica Jung, pela influência que ela percebia existir por parte dele sobre seu esposo. Pois bem, precisamente dali a um ano, aquele casamento se transformara em carga insuportável sobre o rapaz, e sua mulher era fonte de constantes tensões. Deprimiu-se tanto o paciente que nem forças encontrava para deixar o leito, ao passo que a esposa, pouco se importando com o humor depressivo do marido, não se preocupou em avisar seu médico.

Por essa época Jung estava viajando, ministrando conferências em outras cidades. Ao regressar de um desses eventos ao seu hotel, por volta da meia-noite, embora se sentindo exausto, não conseguia pegar no sono. Só adormeceu às duas da madrugada para, sobressaltado, acordar dali a pouco, repentinamente. Havia tido a nítida impressão de que alguém entrara em seu quarto, e que a porta fora aberta precipitadamente. Acendeu a luz, mas nada percebeu. Imaginou que algum outro hóspede houvesse se enganado de porta e que, constatando o erro, dali tivesse saído rapidamente. Jung levantou-se, observou o corredor, mas nada havia além do silêncio. “Estranho, pensou, podia ter a certeza de alguém ter entrado em meu quarto”. Procurando avivar suas lembranças, percebeu que acordara em verdade com nítida sensação de uma dor surda, assim ele a descreve, como se alguma coisa houvesse ricocheteado em sua testa para depois bater na parte posterior de seu crânio. Sem solução para o mistério, voltou à cama e adormeceu. No dia seguinte, para seu espanto, logo cedo recebeu um telegrama que lhe comunicava a morte daquele seu paciente deprimido: ele dera um tiro em sua própria cabeça. Soube mais tarde que a hora do suicídio conferia com a de seu estranho sonho, e que o projétil entrara pela fronte para alojar-se em região occipital.

Jung explica: “Tratava-se, neste caso, de um verdadeiro fenômeno de sincronicidade, tal qual se pode observar freqüentemente numa situação arquetípica – no caso, a morte. Dada a relatividade do tempo e do espaço no inconsciente, é possível que eu tenha percebido o que se passara, em realidade, num outro lugar. No caso em questão, meu inconsciente conhecia o estado de meu doente. Durante a noite inteira eu experimentara um nervosismo e uma inquietação espantosos, muito diferente de meu humor usual”.

Emilie Preiswerk – mãe de Jung

Mas esta não foi a primeira nem seria a última experiência parapsicológica a permear a sua vida. Desde criança, Jung, que nascera em Kesswil, interior da Suíça, ouvira contar casos de fantasmas e histórias folclóricas extraordinárias da região campesina do Cantão. Em sua própria genealogia encontrava raízes fortes da crença nos espíritos. Seu avô materno, por exemplo, o pastor presbiteriano Samuel Preiswerk, que Jung não chegou a conhecer, era casado em segundas núpcias com Augusta Preiswerk e mantinha regularmente, para infelicidade desta, conversas com sua falecida esposa. Reservava em seu gabinete de trabalho um sofá onde diariamente, em hora sempre a mesma, recebia o espírito da finada Madalena, com quem dialogava secretamente. Outra de suas manias era a de pedir à sua filha Emilie, mãe de Jung, que se sentasse atrás dele enquanto escrevia sua gramática de hebraico ou seus sermões, isto porque agindo assim, segundo ele, os espíritos não o perturbariam pelas costas. A respeito de sua segunda esposa, avó de Jung, conta-se que aos dezoito anos caíra enferma gravemente, tendo contraído a escarlatina de seu irmão, e que permanecera em estado cataléptico por 36 horas. Já diante do caixão em que seria enterrada, sua mãe, não acreditando que Augusta Preiswerk estivesse morta, aplicou-lhe um ferro de passar roupas em brasa sobre a nuca, chamando-a assim de volta à vida. Apelidada de “Gustele”, a avó de Jung era respeitada como clarividente dotada de estranhos poderes, capaz que era de profetizar em estado sonambúlico.

Paul Aquiles Jung, pai de Carl Jung

O próprio Jung recorda-se de suas primeiras experiências inquietantes quando contava apenas três anos de idade. Dormia por essa época no quarto de seu pai, já que o casal vivia em regime de separação de corpos. Todas as noites, percebia que a natureza de sua mãe se modificava, e ela se tornava, diz ele, temível e perigosa. Certa noite, pôde observar que do quarto dela saía “uma figura luminosa, cuja cabeça se despregou do pescoço e planou no ar, como pequena lua”. A amedrontadora visão repetiu-se por umas seis ou sete noites. Fértil imaginação de uma criança aflita pelo ambiente tenso de relacionamento conjugal de seus pais? Possivelmente sim, mas o fato é que tantas outras experiências inusitadamente fortes se seguiram em sua vida, que só restou mesmo a Jung procurar estudar esses fenômenos e interpretá-los à luz de sua revolucionária psicologia.

Helen Preiswerk, prima de Jung

Sua dissertação de mestrado, importante que se diga, intitulava-se Sobre os Fenômenos Assim Chamados Ocultos. Foi apresentada em 1902, e analisava detalhadamente a suposta mediunidade da senhorita S.W. (pseudônimo de Helena Preiswerk, em verdade uma prima sua em primeiro grau) durante sessões espíritas, bastante em moda na virada para o século XX, realizadas no âmago de sua família e em presença de outros convidados. O estudo fora feito entre 1899 e 1900; a médium era pessoa introvertida, franzina, de natureza frágil e não muito inteligente; apresentara problemas de aprendizado na escola e contava quinze anos quando se iniciaram as sessões. Morreria mais tarde, aos 26 anos, de tuberculose e “infantilizada”, assumindo comportamento de uma criança de pouco mais de 10 anos. Os fenômenos desenvolvidos por Helena iam desde automatismos, como a psicografia e a movimentação rápida de um copo sobre as chamadas “mesas giratórias”, até estados de incorporação em semi-sonambulismo, incluindo mudanças grotescas da voz, da maneira de falar, e alterações surpreendentes do caráter. Também ocorriam as chamadas comunicações com os “desencarnados”, mediante golpes que provinham das paredes e da própria mesa de trabalhos.

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Jung, interessado na fenomenologia, passou a organizar sessões aos sábados em sua própria casa; decepcionou-se, entretanto, ao flagrar por diversas vezes sua prima fraudando os fenômenos. Acabou concluindo sua análise como um caso complexo de “dissociação histérica”, facilitado e prestigiado pelo meio cultural-religioso em que ocorria. Seu trabalho, interessantíssimo, e escrito com agudo senso de investigação, compõe o 1o volume de suas Obras Completas, editado em português pela editora Vozes, sob o título Estudos Psiquiátricos.

Não apenas Helena, porém, chamaria a atenção de Jung para os eventos parapsicológicos; ele próprio vivenciou algumas situações que nos dão muito o que pensar.

Num curto espaço de exatas duas semanas do ano de 1898, durante as férias de verão da Faculdade de Medicina da Basiléia, dois curiosos acontecimentos no estilo Poltergeist vieram servir de alimento para suas indagações futuras. Estando a sós com sua mãe em sua casa, em Zurique, Jung estudava em seu escritório enquanto ela fazia tricô na sala contígua. De repente, o silêncio foi quebrado por forte estampido, semelhante a um tiro de revólver! Sobressaltados, ambos procuravam saber o que havia acontecido; olhavam à sua volta quando deram com a mesa de madeira inteiriça da sala principal que havia se partido, rachando-se ao meio misteriosamente. Era nogueira sólida que secara há setenta anos e, segundo Jung, naquelas condições climáticas de umidade relativamente elevada tal rachadura nem poderia ter ocorrido.

Pórtico da casa de Carl G. Jung, em Zürich, onde ele e sua família presenciaram fenômenos de psicocinesia – foto de Paulo Urban

A faca tripartida – foto do próprio Jung

Quatorze dias mais tarde, Jung viveria outro episódio de psicocinesia, tão estranho quanto o primeiro. Havendo entrado em sua casa por volta das dezoito horas, encontrara sua mãe e sua irmã, esta com 14 anos, extremamente agitadas e nervosas. Há uma hora haviam escutado outro barulho ensurdecedor, vindo da direção de um pesado móvel do século XIX, no qual se dispunham os pratos e talheres. Numa de suas gavetas, onde se guardava a cesta de pão, além das migalhas, Jung encontrou a faca que há pouco fora usada no café da tarde com sua lâmina rompida em três pedaços. No dia seguinte, Jung levou o material quebrado a um dos melhores cuteleiros da cidade. Este lhe teria garantido, “É faca de boa qualidade, não há defeito no aço, quem a partiu deve tê-la forçado contra a fenda de uma gaveta ou martelado com ela sobre pedras. Alguém está querendo lhe pregar uma peça!”. A faca, inexplicavelmente partida, foi cuidadosamente guardada por Jung durante toda a sua vida. Por que se estilhaçara? E como explicar a rachadura da mesa de nogueira maciça? “A hipótese do acaso para explicar o ocorrido, diz Jung, tinha a mesma probabilidade que a do Reno correr em direção a sua nascente”. Ele já suspeitava por essa época que forças inconscientes consteladas, isto é, reunidas em potenciação, a ocorrer em momentos específicos de nossas vidas, em situações que Jung mais tarde batizaria como “arquetípicas”, poderiam ter energia suficiente para desencadear fenômenos físicos perceptíveis à nossa volta, ainda que de forma repentina e quase nunca sob o controle de nossa vontade.

Sigmund Freud, no alto de seus 50 anos

Digo quase nunca, pois, ao que parece, Jung acabaria desencadeando mais ou menos conscientemente um dos mais curiosos fenômenos psicocinéticos de sua vida. Deu-se em presença daquele que para ele foi, desde quando se conheceram pessoalmente em 1906, em Viena, primeiramente um mestre, depois quase um pai, para mais tarde, em 1913, desentenderem-se e terem rompida a amizade. Estamos falando de Freud, o pai da Psicanálise, que quis ver em Jung um de seus melhores discípulos, nele projetando toda a esperança de fazê-lo herdeiro de seu saber psicanalítico. Mas esta sua vontade não se concretizou. Tendo divergido de Freud, principalmente no tocante à questão da libido e quanto às bases de interpretação do material onírico, Jung acabou por estruturar seu próprio sistema de compreensão do psiquismo humano ao qual denominaria de “Psicologia Analítica”. Além disso, pensava: “Retribui-se muito mal aos mestres se nos tornamos para sempre seus discípulos!”.

Freud e Jung

Freud e Jung

Jung visitou Freud em 1909 justamente com o intuito de questioná-lo a respeito dos fenômenos psi. Perguntando a Freud o que ele pensava acerca da precognição e da nova ciência, a parapsicologia, ouviu do mestre que não deveria estar se preocupando com tolices desse gênero. (*) E enquanto Freud discursava, Jung ia sofrendo uma estranha sensação; sentia seu diafragma como ferro ardente, parecia haver dentro dele energia capaz de abaular seu abdômen. Foi quando algumas pancadas misteriosas passaram a ser ouvidas pelo consultório, culminando num estalido forte como se a estante de Freud (curiosamente, símbolo de seu saber) fosse desabar sobre os dois. Jung gritou: “É o que eu chamo de fenômeno catalítico de exterioração!” Ao que Freud respondeu: “Ora, isto é puro disparate!”. Jung, atestando sua razão, profetizou: “Pois estou tão certo do que falo que afirmo que igual fenômeno se reproduzirá neste exato instante!” E, pou!, outro estalido bem sonoro explodiu ali mesmo na estante. Freud olhou-o emudecido e horrorizado. Tinha acontecido!

Em carta datada de 16 de abril daquele ano, Freud diz a Jung, falando sobre o assunto, que poderia dar inúmeras “explicações naturais” para os “espíritos golpeantes”. Não podemos deixar de observar que na fala do “mestre” estava a suposição de que no discurso dos que se interessavam por “tolices desse gênero” estivesse a crença de que seriam “espíritos sobrenaturais” os agentes causadores destes estampidos. Mas Freud estava bem distante das interpretações que Jung proporia para os fenômenos psi, para ele explicáveis de forma natural e sempre relacionados com nosso psiquismo mais profundo, individual ou coletivo, mas humano.

Poderíamos narrar muitos outros episódios parapsicológicos na vida de C. G. Jung, boa parte deles encontra-se descrita na citada autobiografia. Mas fugiríamos das dimensões deste texto, cuja pretensão é apenas a de revelar o quanto de mistério ainda existe em nosso mundo psicológico mais profundo, passível de interação não mecânica com o meio físico à nossa volta, psiquismo esse também capaz de transpor as barreiras impostas quer pelas malhas do tempo, quer pela rede do espaço.

O físico Wolfgang Pauli

Wolfgang Pauli

No apêndice de sua obra póstuma, O Homem e seus Símbolos, traduzida pela editora Nova Fronteira, voltada ao público leigo, esboça-se uma relação entre a Psicologia Analítica e as descobertas relativísticas da física quântica. Jung julgava imprescindível uma complementaridade à sua psicologia para que a humanidade encontrasse modelos mais satisfatórios para a explicação dos fenômenos psi. Sonhava Jung que os físicos, a começar por seu analisando e amigo Wolfgang Pauli (1900-1958), um dia pudessem emprestar à sua obra um auxílio enorme, para que uma teoria interdisciplinar mais consistente se firmasse sobre novos e revolucionários paradigmas, transcendendo a maneira encontrada pela física clássica para explicar o Universo e seus fenômenos. Mais uma vez o médico da Basiléia profetizara, pois é isto justamente o que vem ocorrendo no discurso científico contemporâneo.

(*) Na verdade, dali a alguns anos Freud abriria publicamente sua mente, ainda que com reservas, para inteirar-se dos eventos parapsicológicos, chegando a escrever interessantes e reveladores artigos sobre sua pia crença no fenômeno telepático. São os trabalhos “Psicanálise e telepatia” (1921), “Sonho e telepatia” (1922), “O significado oculto dos sonhos” (1925) e “Sonho e ocultismo”(1933), textos estes, lamentavelmente, pouco lidos pela maioria dos psicanalistas.

One Comment

  1. PAULO JORGE BRITO E ABREU disse:

    …E sem Narciso nem narcose, «as portas da percepção», em Jung, são preste purificadas. Ou melhor: ele explica, explana e estuda uma harmonia preestabelecida entre acontecimentos fisiológicos ou psíquicos, para além do princípio da causalidade: e a essa Teoria chamou o suíço de «sincronicidade». E revelam-se e desvelam-se, também na vida nossa, os Arquétipos, os símbolos, os Génios dos Arcanos. Por exemplo, inda anteontem, abriu-se uma anteporta: eu consultava, com ardor, o «Tratado da Ciência Cabala», de D. Francisco Manuel de Melo – e enquanto eu lia, com alor, sobre a Fonte Cabalina, uma «persona», ou personagem, da telenovela, pronunciava, ou nunciava, a palavra «cavaleira». Mais notório, «Notarikon» ou digno de nota, o Dicionário, qualquer Dicionário, se consultado, pronto e preste, com respeito, nos retorque, retruca e responde, na página aberta a seguir ao quesito. Me relembro, portanto, da lição e prelecção de Agostinho Maldonado: basta um livro lexical da Língua Portuguesa para entrarmos, solertes, em vasto «Liber Mundi»: a isso eu chamo o lis; o levita, e levedado, a lisura do Azul…….

    PAULO JORGE BRITO E ABREU

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