Última vez que estive em Lisboa, conforme combinado por cartas de há muito trocadas, e a fim de aconselhar-me quanto a certas questões que há tempos perturbam este meu espírito por natureza já agitado, fui visitá-lo. O acirrado movimento da Rua dos Douradores àquela hora de fim de tarde fervilhava de transeuntes apressados e gente do comércio entretida em negócios. Eu, que nada tivera a cumprir desde o meio-dia, senão o lento passar das horas até a de nosso encontro, estivera a visitar o fabuloso Castelo de São Jorge, de onde se tem melhor vista do Tejo, e de seu mirante descera entusiasmados passos até o endereço de Bernardo.
Casa Vasques & Cia; suspirei ares de satisfação, era ali. Dado o dia útil, julguei encontraria o fiel amigo, cuja face in vivo jamais vira, por trás de alguma escrivaninha a anotar nos livros de Razão, posto me contara ser, em que pese todo seu amor pelas letras, nada mais que um prosaico guarda-livros, dos mais discretos e metódicos, inclusive. Dois rapazes ali trabalhavam e, indagando por qual deles seria Bernardo, o mais jovem informou ser aquele o seu dia de folga, e que talvez estivesse, como por hábito fazia, a beber nas tavernas decentes da redondeza ou a cear logo mais nalguma casa de pasto. Ou, com sorte, nem tivesse saído e recluso o encontrasse no apartado em que morava, na sobreloja, entretido em seu dileto passatempo de escrever. Agradeci ao informante dizendo-lhe que bem saberia onde encontrá-lo, e pus-me a subir a escadaria que se abria ao lado, na fachada, que me levaria ao quarto andar do prédio. Crescente alegria galgava os andares, mal podia imaginar o tão melhor que seria ter com Bernardo justamente no ‘dia de seu não trabalho’. O que não seria aconselhar-me com aquele a quem – por tudo que eu lera de sua lavra ao longo dos nossos anos de amizade epistolar – eu reputava pudesse servir-me não somente como o mais pessoalíssimo, senão o mais sábio dos oráculos.
Por isso eu o elegera meu confessor, sabia-o ou, ao menos, idealizava-o profundo conhecedor da alma humana, e solicitara-lhe esta entrevista. Pôr-me assim, diante de Bernardo, equivalia a na Antiguidade estar defronte à trípode de Delphos, a bem de consultar as pitonisas, ou, ainda, em tempos hodiernos, ao raro privilégio de ter a própria carta natal interpretada por nada menos que Raphael Baldaya, simplesmente o maior astrólogo-cabalista de nosso século, cujos estudos, infelizmente, Lisboa e o mundo tanto ainda desconhecem. Pois, privar-me assim algumas horas em tertúlia com Bernardo era-me prêmio desta monta, sonho maior que eu alimentava desde quando, por cartas idas e bem-vindas, combinamos data e hora para este nosso apontamento. E que gentileza a dele em tirar o dia de folga a fim de receber-me!
E foi entre sístoles de quase aflição e diástoles de incabível alegria que bati àquela porta. Abriu-me um homem aparentando ares de quinta década, pés de galinha abrindo-se ao canto dos olhos para as têmporas, cabelos alvos e escassos, figura magra em trajes nobres bem vestida, elegante em demasia para quem se propusesse a passar o dia de folga em casa. E como me escancarasse logo a porta, observei o requintado gosto com que tudo ‘mobilara – impossível que não fosse à custa de algumas coisas essenciais – com um certo e aproximado luxo os seus dois quartos. Cuidara especialmente das cadeiras – de braços, fundas, moles –, dos reposteiros e tapetes’. (1)
Vendo que eu observava aos detalhes, copinho de aguardente na mão, dando um gole, exclamou:
— ‘Que mais tem o espírito a fazer senão beber até que a vida esqueça?’ (2) E por praxe de etiqueta ofereceu-me um trago, ao qual, também por educação, recusei.
— Belo ambiente o seu, amabilíssimo Bernardo!
Ele tomou seu ar de espanto, interrogando-me com os olhos.
— Criei este ‘interior para manter a dignidade do tédio. No quarto à moderna o tédio torna-se desconforto, mágoa física’ (3), sabes?
E antes que eu pudesse dizer-lhe qualquer coisa, para minha maior surpresa, completou:
— Mas não sou o Bernardo que procuras; chamo-me Vicente, Vicente Guedes (4), a vosso dispor.
Pasmo, cuidando ter vindo ao endereço certo, tirei do bolso do casaco a última missiva que me enviara o amigo, dois meses antes de eu me decidir a viajar, em cujo remetente se lia: Rua dos Douradores, Casa Vasques & Cia, 4º andar. Ora, pois, não era ali?
Explicou-me Vicente, leve odor de álcool perpassava sua fala, que há duas semanas deixara o apartado da Rua dos Retroseiros, 17, onde habitava também um 4º andar, pois, por superstição, sempre preferira os quartos do quarto, e que as mesmas economias que lhe garantiam decorar com certo luxo seus dois quartos haviam lhe servido também para decentemente gratificar o inquilino que até então ali morava, com o que, sem exagero nem ofensa, Bernardo aceitara mudar-se para o segundo andar, até porque já vinha com a intenção de o fazer, alegando serem muitas as escadas a roubar-lhe o precioso tempo dedicado em escrever.
Despedi-me de Guedes e desci dois lances. Dei de frente, finalmente, com a porta de Bernardo. Ao lado dela, uma campainha, sob a qual se lia o datilescrito sobrenome ‘Soares’ ao lado dos dizeres: ‘Carregue no botão’. Carreguei nele, pois, e estridente som metálico fez-se ouvir por todo andar. Ninguém o contestou, entretanto. Fiz soar de novo a campainha. E como desde o início havia notado, na falta de quem viesse abrir a porta, resolvi olhar mais de perto o envelope que se sobressaía por debaixo dela, e mais curioso fiquei ao ver que nele estava caligrafado meu nome. Tomei-o, pois, e com pressentimento assaz estranho o abri. Desdobrando o papel, tipicamente igual àqueles que me portavam a voz do amigo em suas literárias missivas, nada mais havia que, caligrafia própria dos que anotam nos livros de Razão, a seguinte (e para mim mui dolorosa) ‘Máxima’ (5):
“Dar bons conselhos é insultar a faculdade de errar que Deus deu aos outros. E, de mais a mais, os actos alheios devem ter a vantagem de não serem também nossos. Apenas é compreensível que se peça conselhos aos outros para saber bem, ao agir ao contrário, que somos bem nós, bem em desacordo com a Outragem”. B.S.
Tremendo balde de água fria. Dobrado o assombro, o mar era o mesmo… saquei de novo a derradeira carta que ele me enviara, aquela mesma cujo endereço subscrito eu mostrara ao Guedes, pela qual Bernardo, misantropo como soem ser os pensadores mais sensíveis, já me cantara a bola de que talvez nem mesmo estivesse ali por receber-me em sua casa a fim de contentar capricho meu, pois, assim se expressara ao despedir-se com protestos de estima e consideração:
“Saber interpor-se constantemente entre si próprio e as coisas é o mais alto grau de sabedoria e prudência”.
E vi que já se continha nesta ‘Máxima’ a contraparte de meu desejado conselho, aquele que, sem que eu percebesse, já me fora dado antes mesmo que eu me propusesse a atravessar oceano e continente para que, ora ferida minha presunçosa arrogância, pudesse cair melhor aceite dentro em mim, a conferir certo sossego e lastro a esta minha perturbada alma inquieta.
Embora inconformado com a inesperada atitude do amigo, por isso mesmo, assim o creio, desde então mais ainda passei a admirá-lo. Afinal, convenhamos, os gênios hão de ser tudo, exceto convencionais, até porque se o fossem jamais seriam gênios. E finda a tarde de expectativas só não maiores que os desencontros, a noite lisboense iria me encontrar em baixa (autoestima) lá na Baixa, a fazer silêncio em pleno Chiado repleto do ruído de toda gente, mais precisamente sentado a reler as cartas do amigo e a beber meus solitários tragos no café ‘A Brasileira’, hoje ponto turístico da rua Garret (6), um dos locais preferidos de Pessoa.
E foi assim – frustrado e a sós, confabulando em meio a brumas de perturbações minhas as mais translúcidas, relendo o bilhete que me deixara o amigo – e só agora atinando ao porquê dele mesmo ter pedido ao Vasques o dia de folga não para melhor receber-me, senão, destarte, sair cedo de casa e evitar-me – foi assim que me vi, paradoxalmente, seguindo à risca o (não) conselho que me fora dado: inspirado pelo fado (esse destino), e quase sem ousar desafiá-lo, flagrei-me à toa entre um copo e outro a rabisquerrar no guardanapo de papel de ‘A Brasileira’ estes decassílabos heroicos, a conferir total razão àquilo que me aconselhara a invisível esfinge de meu amigo guarda-livros:
AMANTERRANTE
Eu não quero conselhos, quero errar!
Errando sou eu mesmo sem limite,
errar me pede o arbítrio eu seja o acinte:
— Jamais fintes de acerto erros de amar!
Que os erros, sempre humanos, são grafite;
apagam-se e reescrevem-se ao contar
o quanto é mais preciso o navegar
dos que erram pelos mares sem palpite.
Por isso eu nada sou além de errante
e aprendo, errando, a dor de sempre a ter
sentindo a intimidade que, em mim, erra.
E assim, grafite andante de meu ser,
desperto o amor: em sono entranho a terra;
carbono, oculto minha alma de amante!
Paulo Urban
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(1) Ipsis literis, consta do ‘Prefácio de Fernando Pessoa ao Livro do Desassossego, de Bernardo Soares’.
(2) Frase de Vicente Guedes anotada sob o título ‘R, nunc est bibendum’ (agora se deve beber).
(3) Também do ‘Prefácio de Fernando Pessoa ao Livro do Desassossego’.
(4) Heterônimo a quem Pessoa chegou a dar, inicialmente, a autoria do ‘Livro do Desassossego’.
(5) Aqui entre aspas e com maiúscula por referir-se às ‘Máximas’ de Bernardo Soares, constantes nas mais autorizadas versões do ‘Livro do Desassossego’.
(6) Homenagem ao poeta português Almeida Garret (1799-1854).
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Leia também aqui no Amigo da Alma outros textos de Paulo Urban a respeito de Fernando Pessoa:
Pessoa Oculta em Pessoa
No Túmulo de Christian Rosencreutz
A Mensagem de Pessoa
Cavaleiro Kadosh
Mestre Alberto
Um Monge em Pessoa
Declaration d’Amour
Prezado Paulo, não tenho palavras para elogiar teus versos; peço, também, vossa licença para postar o “Amanterrante” em minha página do facebook.
Não imaginas o nó que a saudade arrochou meu coração, lendo-te e relembrando um pouco da Lisboa que permanece viva em meu coração: o Castelo de São Jorge, o Chiado, o Rossio, a rua Garret, o Tejo, ahhh, o Tejo com suas águas límpidas e fagueiras…
conhecer Lisboa e, logicamente, Portugal, não foi apenas uma aventura turística – simplesmente mudou minha vida, valores e determinou uma forte razão em sonhar acordado e almejar um amanhã ultramarino…
Um forte abraço, meu caro.
Sábios conselhos de Bernardo, pena que faço tudo ao contrário.
Belo texto, com aura de livro.
Um beijo!
Depois de tantas caminhadas me deparo com teus versos que muito dizem.
… bem conheço as lições de Bernardo… bem conheço essa alma errante… bem conheço o sono que entranha a terra…
Afinal, poderia alguém dizer que não conhece?
Beijão no coração Paulo!
Fernando Pessoa será sempre o melhor poeta português.
Obrigado e continuem com o bom trabalho.
Desloco-me de mim, para em ti passear e sentir a proporção
De nossa inquieta alma a vagar em infinitos voos, até entender
Que apenas não é convencional e tem preferências pelo experimentar,
Oras erros, oras acertos, para completar sua própria Mandala
Existencial….Parabéns, Paulo…teus textos provocam-me maravilhosas
Reflexões…
Caríssimo Paulo,
Simplesmente GENIAL.
Já li três vezes O CONSELHO DE BERNARDO. É na verdade um CONTO que prende a atenção desde o início, completamente imprevisível em seu desenrolar e finalização. Uma das coisas que mais aprecio em Arte, seja qual delas for, é exatamente portar como característica a imponderabilidade que leve a um desconcerto final. Ou seja: tudo o que é tido por certo e seguro acabe afundando como em areias movediças e aquilo que jamais foi cogitado surja depois como redenção. E, por cima, O CONSELHO DE BERNARDO é complementado com a belíssima AMANTERRANTE que resume e conclui o texto de uma forma perfeita.
Uma IMENSA LIÇÃO DE VIDA, meu amigo. Muitíssimo obrigado mais uma vez.
Abraço.
Luís Fábio Miranda