(Texto de Christiano Sotero *, publicado na Revista Nova Consciência #2, novembro/2007)
A principal máxima de toda a alquimia encontra-se gravada na Tábua de Esmeralda**, datada de Idade Antiga incerta: ‘Assim como é em cima, é embaixo; assim como é embaixo, é em cima; para perpetuar o milagre de uma só coisa’.
Tal ideia nos remete à verdade alquímica que enxerga em cada uma das criaturas um colaborador da Grande Obra divina. A imagem nos reporta ainda ao teor esotérico guardado nas palavras de Cristo dirigidas a Pedro, apóstolo este, cujo nome grego, a propósito, significa pedra: “ … e tudo o que ligares sobre a terra, será ligado também nos céus; e tudo o que desatares sobre a terra, será desatado também nos céus” (Mt, 16, 19).
Para os alquimistas, além da onipotência, onisciência e onipresença, Deus seria ainda dotado de um quarto atributo, a generosidade, virtude pela qual Ele nos confere o dom do arbítrio. Pelo arbítrio, estado sagrado sobre o qual nem Deus nem os anjos interferem, nascemos todos inerentemente dotados da chance de sermos, à imagem e semelhança divinas, tanto a extensão da vontade de Deus como a repercussão de Seu Verbo criador. É pelo arbítrio que recebemos a graça de podermos realizar nossas obras no plano da existência, tão mais agradáveis aos olhos de Deus quanto mais agimos em consonância com o plano superior, dando assim continuidade ao grande plano criador, aceitando fazer da vida uma abençoada aventura divinumana.
O filósofo Schopenhauer (1788-1860) nos ensina que toda ação reside na semente da vontade. Ora, não é pelo fato de termos pernas que aprendemos a caminhar, mas pelo tanto que desejamos andar que aprendemos a usar as pernas e decidir nossos caminhos. A vontade é um dínamo realizador, e toda a magia nada mais é que a arte de realizar as maravilhas por meio da intenção focalizada.
Mas para tanto é preciso, primeiramente, que haja por parte de toda criatura o desejo de criar algo, num ato semelhante ao do Verbo Criador. Outro axioma mágico nos ensina: “No raio de sua ação, o Verbo cria”. Isto é, na extensão de seus atos, toda intenção gera uma ação, a partir da qual surgem os efeitos. Eis aqui revelado e simples o tripé de toda magia: vontade (intenção), palavra (verbo) e gesto (atitude).
Analogamente, cabe perguntar: “Somos incapazes de voar porque não temos asas ou, pelo fato de nunca termos tido a intenção de ter asas é que não sabemos voar, assim restando presos a uma consciência mais ordinária, limitada pelo denso mundo que nos cerca?”
Só mesmo mediante uma clara intenção de ter asas é que aprendemos a olhar para os céus e descobrir os pássaros, com o que nos entregamos ao indescritível deleite de voar, e daí progredimos dando “realidade ao sonho” pelo puro prazer de imaginar. Só assim é que podemos conceber o mistério de criar as próprias asas.
É, pois, decorrente da expressa vontade de romper com a horizontalidade de nossos entendimentos que determinamos à alma a necessidade de ter asas. Para isso, é preciso que estejamos predispostos a buscar na inspiração divina os nossos maiores anseios, educando assim nossa vontade a fazer ressoar em suas obras terrenas o tom da matriz universal e criadora. Ora, sempre que desejamos nos alçar a outros planos, damos vazão ao impulso gerador das asas. Sendo pacientes e perseverantes nas orações, criamos as condições necessárias ao surgimento desses órgãos em nosso corpo sutil, capazes de nos elevar a uma nova consciência e de nos fazer enxergar lá do alto o panorama de tantas outras realidades transcendentes.
Mas notemos uma importante diferença: os pássaros voam por conta de uma singular relação mecânica entre sua forma aerodinâmica e a ação da gravitação terrestre; já os magos eremitas começam a criar as asas conforme exploram por meio do silêncio e da introspecção seus reinos interditos; somente por buscarem se aprofundar no exercício do voo da alma liberta é que acabam estabelecendo pleno contato em seu âmago com a força de atração proveniente da gravitação celeste ou divina.
Conta-se até que originalmente o homem era dotado de asas, mas que as perdeu ao ser expulso do Éden, ao mesmo tempo em que a serpente teria perdido as suas patas. Desde então, só mediante a purificação desse seu estado denso, e com o gradativo retorno à pura condição primeva, é que podem os homens recuperar as suas asas. Para tanto é preciso orar sem cessar e querer tê-las (intenção), razão pela qual certas palavras (verbo) ditas com fervor um dia conferem perene consistência aos nossos gestos (atitudes) e daí, resultado natural desse novo hábito, chega-se a um ponto de onde podemos concretamente nos alçar em direção à Luz Maior, caso não sejamos antes por Ela arrebatados.
Nisso reside a magia capaz de fazer nascer asas nos homens. É o direcionamento espiritual da alma que nos ensina a aspirar a seu voo soberano. Quando quer que a meditação e a oração se tornem orgânicas, as asas, esses novos órgãos, se substancializam em nosso corpo sutil; elas expressam uma nova realidade anímica alcançada e brotam, pois, da perseverança contemplativa: primeiramente se constelam como energia sutil em nosso mundo inconsciente e, uma vez que aí se façam presentes, conferem à alma a nova função que as torna capaz de ensaiar seus primeiros voos. É através do puro intuito de penetrar no silêncio e expandir a consciência que os véus dos estados psíquicos transcendentes podem ser rasgados.
As asas, entretanto, não se formam apenas por determinação humana, senão exclusivamente quando elevamos nossa vontade à digna condição de ser tocada pelas asas dos anjos, ato capaz de expressar a benção de Deus a proteger nossos mais nobres anseios. Pois assim é que se operam as verdadeiras magias, sempre autorizadas pela ordem divina.
Uma vez em posse de nossas asas, exercendo passo a passo o prazer do voo, aprendemos a gozar da “liberdade das alturas”, a mesma que nos ensina a “regrar” nossos atos terrenos segundo a orientação de uma consciência mais ampla. Quanto mais alto subimos, mais se alarga o campo anímico de visão e, conseqüentemente, maior se torna o grau de responsabilidade sobre o nosso arbítrio, exercido a cada momento e por meio de cada uma das atitudes que escolhemos tomar “aqui embaixo”.
Somos todos “Arjunas” procurando ouvir a voz de Krishna, aquela que nos aconselha a não nos furtar aos desígnios de nossa missão terrena, a não fugir do palco de nossos relacionamentos, campo de batalha onde, ao enfrentar os obstáculos, estamos sempre diante da escolha entre fazer ou não a coisa certa, isto é, em agir consoantes ou não com aquilo tudo que já vislumbramos “lá de cima”. Por isso, o mago que se põe a operar no campo da existência deve apreender a soberana lição do alto, de modo a bem aplicá-la na lide “aqui embaixo”, só assim poderá “perpetuar o milagre de uma só coisa”, o que em termos alquímicos quer dizer: realizar sua obra conforme a lei divina.
Os homens de asas guardam também, é claro, as suas dores. Quanto mais alto aprendem a voar, mais fundo provam a singularidade de sua experiência solitária. Quanto mais alto se arremetem, mais se apartam do mundo que os cerca, quanto mais adentram nos reinos internos da alma, mais se isolam nos santuários onde jazem guardadas as relíquias de nossa essência divina e arquetípica.
Por isso, há sempre um par de asas: elas expressam o mistério de nossa imagem e semelhança divinas; conquanto uma delas representa nossa entrega aos desígnios de Deus, a outra traduz a benção dada por Ele sobre toda obra que “aceitamos/escolhemos” realizar em Seu nome. Sempre que os homens alados se predispõem a isso, descobrem em si a verdadeira potência da imago-dei (imagem de Deus) que todos trazemos guardada na alma. É justamente a partir desse instante que os homens alados se tornam mais responsáveis sobre seus atos e podem, feito heróis, lutar pela quebra dos velhos padrões vigentes. Muitos aceitam até mesmo sacrificar-se em nome de algo transcendente, desbravando assim caminhos evolutivos no psiquismo coletivo, favorecendo a ascese de toda a humanidade à percepção de novos patamares de consciência.
O par de asas diz igualmente respeito ao sigilo guardado na máxima que expressa por excelência a prática da alquimia: ora et labora (oração e trabalho). Deste dístico nasceu o termo laboratório (labor + oratório), a designar um espaço físico e ao mesmo tempo uma instância interna e sagrada, dedicados à perseverança e ao trabalho devocional. O símbolo que melhor pode representar o laboratório alquímico é o do coração abrasado pelo fogo divino da compaixão; é este o verdadeiro sacre-couer de Marie, ou o coração coroado de espinhos de Jesus, ambos ícones correlatos do chacra cardíaco desperto, conforme representado no hinduísmo por um lótus de doze pétalas em pleno desabroche. Eis aí a morada calorosa onde pode florescer a Pedra Filosofal capaz de operar todo o milagre da transmutação divina.
As asas nos permitem percorrer a estrada celeste e nos levam à experiência do “contato entre a imagem e semelhança”, nos favorecem voar, a peregrinar interiormente em direção à verdadeira imagem perdida, à fonte matricial de onde somos todos oriundos. Ao mesmo tempo, elas guardam a semelhança com o ato divino, posto que podem ser estendidas da maneira a mais amorosa para o bem de tudo aquilo que julgamos seja precioso em nossas vidas. Assumem, pois, dupla função: tanto nos levam a buscar pelo misterioso “dom” da vida, como nos ensinam a abençoar as boas intenções, semelhantemente a quando recebemos a proteção divina.
Esse contato entre o embaixo e o alto, entre imagem e semelhança, pelo tremendo efeito que provoca, nos faz arder de amor sob a luz da mansidão divina e nos ensina simples e humildemente a chorar diante de Suas tantas maravilhas. As asas nos alçam assim ao mistério da purificação. Sempre que somos tocados pelo Altíssimo, produzimos lágrimas. Tal fenômeno forma um círculo virtuoso: quanto mais alto voamos, mais somos inspirados pelo plano divino; com isto mais nos maravilhamos e, por conseguinte, choramos; o pranto nos torna mais leves, e assim, mais alto subimos. A constante repetição de tal ciclo, dinamizada pela prática das orações, purifica nossos aspectos mais densos e torna a alma cristalina, o que acaba por dissolver as mágoas (que em verdade são as más-águas) que trazemos cristalizadas em nosso corpo sutil.
As lágrimas têm, pois, o poder de nos tornar mais leves, de fazer escoar nossos pântanos, cumprem também regar os jardins onde brinca nossa criança interior. Conforme se derramam sobre a face, as lágrimas fazem cintilar os olhos d’alma, abrem espaço para a entrada das torrentes e cascatas com que o amor incondicional vem nos banhar toda vez que somos merecedores das bênçãos superiores. Ainda que seja poética a imagem dos homens de asas, a mitologia clássica expõe claramente no trágico fim de Ícaro o risco a envolver todo ego que se deixe seduzir pela aventura das alturas sem levar em conta a realidade de seu papel terreno, plano este onde todos nós choramos tanto as dores quanto os prazeres da existência, também onde devemos aprender a dar asas à alma visionária sem nos furtar das responsabilidades de nossa missão.
Ah, esses homens de asas… nada mais são que almas sensíveis capazes de chorar, espíritos de águia que conhecem a liberdade, que abrem seus olhos à nova consciência, que ousam fitar os mistérios que emergem do infinito…
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** A TÁBUA de ESMERALDA
Roga a lenda, narrada em um manuscrito alquímico do século XIII, que Alexandre, o Grande, da Macedônia (356-323 a.C.), teria descoberto a tumba do sábio grego Hermes Trimegistos, quando de sua invasão do Egito. No túmulo, junto aos ossos, Alexandre se maravilhara com a fabulosa Tabula Smaragdina, ou “Tábua de Esmeralda”, que trazia 13 assertivas escritas em grego, cujo fundamento trata da mítica separação das forças opostas e complementares da natureza e de sua posterior re-conjunção por meio da síntese alquímica.
A complexidade esotérica da Tábua de Esmeralda faz dela uma aparentada do Corpus Hermeticum, conjunto de 17 tratados alquímicos, datados cerca de II d.C., traduzidos cerca de 1460, para o latim, pelo humanista italiano Marcilio Ficino (1433-1499). Alguns tratados do Corpus Hermeticum acham-se assinados por Poimandres, alquimista que, em respeito à regra áurea do anonimato, preferiu manter-se oculto por detrás da figura bucólica de seu pseudônimo (poimén, em grego, quer dizer “pastor”).
A autoria da Tabula Smaragdina permanece incógnita. Miticamente reputada a deus Hermes, só pôde ser traduzida para o latim no séc. XII d.C. a partir de dois manuscritos árabes datados cerca de 650 e 800 d.C., respectivamente. O segundo de seus 13 aforismos, todos eles dotados de densa sutileza, adverte:
“Quod superius est sicut quod inferius;
quod inferius est sicut quod superius
ad perpetranda miracula rei unius”.
“Assim como é em cima, é embaixo;
assim como é embaixo, é em cima;
para perpetuar o milagre de uma só coisa.”
A máxima expressa a cosmogonia alquímica, que considera todo o Universo uma só coisa, sendo o homem o elo entre o plano superior, divino, e o próprio plano em que vive, dito inferior ou humano. Tal ideia não é outra senão a do sofista Protágoras de Abdera, do século V a.C.: “O homem é a medida de todas as coisas, do Ser para as coisas que são, e do Não Ser para as coisas que não são”.
Arqueologicamente, nada prova que Alexandre tenha descoberto a Tábua, mas é fato que seus dizeres expressam tanto a verdade de Protágoras como a de outros filósofos pré-socráticos, como Tales de Mileto (624-546 a.C.), Anaximandro (611-546 a.C.) e o Mestre Pitágoras (580-489 a.C.), que foram provar no Egito das Iniciações aos Grandes Mistérios.
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* Christiano Sotero, 78 anos, é poeta e filósofo-alquimista
e-mail: christianosotero@amigodaalma.com.br