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Reconhecendo o Céu de Inverno

RECONHECENDO O CÉU DE INVERNO

 Texto de Paulo Urban, publicado na Revista Planeta, edição nº 393, junho/2005

Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento.

O céu de inverno é o mais apropriado à investigação a olho nu ou através de instrumentos ópticos simples, visto que as noites desta estação mais fria costumam ser também as mais límpidas, com baixa nebulosidade.

Constel.Libra.0.6

Libra é a constelação zodiacal seguinte a Virgem, a última de que tratamos em nosso céu de outono. Simbolizado por uma balança, este signo é uma exceção às demais constelações do zodíaco, sempre representadas por seres humanos, bestiais ou mitológicos. Essa particularidade se deve ao fato de que na Antigüidade mesopotâmica, os povos babilônicos notaram que o Sol se situava nesta área do céu quando ocorria o equinócio, data astronomicamente demarcada pelo equilíbrio entre o dia e a noite, de igual duração. Daí ser natural que associassem às estrelas que se encontram nesta região do firmamento a idéia de uma balança cósmica, a medir e compassar a dança das estrelas.

Peço ao leitor que se posicione de frente para o Norte (ficando, portanto, o leste à sua direita e o oeste à esquerda), de modo a melhor visualizar este asterismo, que será encontrado a meia altura, a noroeste, entre Virgem (já observada) e a constelação seguinte de Escorpião que, por sua vez, estará mais alta no firmamento e estendendo-se quase até o zênite da abóbada celeste. Libra será facilmente lembrada como a figura de uma pipa: alfa, beta, gama (estrelas mais brilhantes) e iota Librae, compõem um losango, ao passo que sigma e tau Librae, respectivamente quinta e sexta estrelas visíveis a olho nu, que parecem estar quase encostadas uma na outra, sugerem-nos o rabo do brinquedo.

Libra constitui uma área de transição entre o campo de nebulosas extragalácticas já observadas em Virgem e a rica zona dos aglomerados estelares que nos esperam em Escorpião. Curiosa observação foi feita na Antigüidade pelo astrólogo egípcio Manethon, século III a.C., que registrou que as duas garras do Escorpião, que bem antes de seu tempo se estendiam até quase tocar os pés da Virgem, ora haviam sido transformadas nos pratos da balança.

Constel.Escorpião.0.6

Tateando o zênite, um pouco deslocado para o oeste, o leitor encontrará Escorpião, figura zodiacal característica de nossas noites de inverno, também aquela dentre todas as 88 constelações cujo desenho perfeitamente justifica a razão de seu nome. Podemos mesmo enxergar um nítido escorpião: seu corpo sinuoso expressa movimento desde a cauda até a cabeça (pontuada por delta Scorpii), de cuja altura partem seus braços dianteiros (à direita demarcado por pi Scorpii e à esquerda por beta Scorpii, esta mais brilhante), que se resolvem numa miríade de estrelas que nos fazem imaginar com clareza suas garras arqueadas e em forma de pinça. Escorpião atravessa a Via Láctea, bastante larga nesta área do céu, particularidade que facilita a identificação do conjunto, mas que, devido ao grande pontilhado de asterismos que não fazem parte da figura principal, dificulta-nos um pouco a localização de todas as curiosidades que podemos nela encontrar.

Constelação de Escorpião

Beta Scorpii, por exemplo, é espetáculo à parte; trata-se de um sistema quádruplo que, se observado por um simples binóculo, revelar-se-á uma bela estrela dupla. A estrela que mais nos chama a atenção, entretanto, é a supergigante alfa Scorpii, popularmente conhecida por Antares, cujo nome significa “a rival de Ares”, aquela que, sendo avermelhada, compete em brilho com o planeta Marte (Ares para os gregos). É ainda uma das quatro estrelas reais segundo os persas, portanto, uma das quatro guardiãs do céu. Os antigos viam nela o coração de Escorpião, muito embora hoje saibamos que este órgão não faz parte da anatomia dos aracnídeos. A radiação de Antares, que se encontra a 173 anos-luz, equivale a de 700 sóis, e se observada ao telescópio simples, com um pouco de sorte, poderemos ver sua companheira de 6ª magnitude, uma estrela anã azul, duas vezes maior que o Sol, distante cerca de 3 segundos de arco da principal (o que dificulta um pouco observá-la), conferindo ao sistema uma coloração azul-esverdeada.

Estendidas em direção ao sul, oito estrelas compõem sua belíssima e brilhante cauda: epsilon, teta e lambda Scorpii têm magnitude 2, mu, eta, kappa e iota Scorpii têm magnitude 3; nu Scorpii, de 3ª magnitude, finaliza com perfeição o conjunto. Os árabes a denominam Lesath, a designar o peçonhento ferrão. Escorpião, vimos seu mito no céu de verão, persegue eternamente o gigante caçador Órion que, nessa época, está marcando o zênite do Hemisfério Norte.

Messier 6 em Escorpião

O leitor munido de uma simples luneta de Galileu poderá descobrir inúmeros aglomerados nesta região. Dois deles são visíveis mesmo a olho nu: Messier 6, encontrado a meia distância entre eta e lambda Scorpii e, um pouquinho mais ao sul, Messier 7, que sugere uma mancha esbranquiçada. Focalizando sobre ela um telescópio comum, o leitor contará mais de uma centena de estrelas cintilantes contrastando com a cor leitosa de nossa Via Láctea.

Peço ao leitor que por um momento se volte de frente para o Sul, a fim de observar a sudoeste (à sua direita, portanto), no alinhamento entre Antares e as duas guardiãs do Centauro, alfa e beta Centauri – apresentadas no céu de outono – um grupamento de várias estrelas de 3ª e 4ª magnitudes. Estamos na constelação do Lobo, espaço que nos oferece um belo aglomerado circular, o NGC 5822, bem observado por um bom binóculo. Vale a pena!

Novamente de frente para o Norte, bem diante de seu rosto, nos primeiros graus a oeste e a meia altura do horizonte, o leitor encontrará Hércules, o mais famoso herói da mitologia clássica. Também é constelação das mais importantes, posto que é em sua direção que caminha o Sol, arrastando consigo todo o conjunto de seu sistema. Chamamos “ápex” a este ponto de convergência cósmica, em direção ao qual viajamos numa velocidade de 20 Km/seg, que nos faz percorrer quase dois milhões de quilômetros por dia. Convém explicar que nenhuma estrela é fixa, todas se dirigem para seus respectivos infinitos pontos do espaço, e ao mesmo tempo mantêm seu outro importante movimento de gravitação em torno do núcleo das galáxias de que fazem parte. Para que o leitor melhor entenda nossa investida rumo ao ápex, lembremos que ao caminharmos num bosque, temos a impressão de que a paisagem à nossa frente se abre para nos deixar passar e que, depois, novamente se fecha, conforme nos distanciamos do caminho deixado atrás de nós. Os astrônomos notaram esse mesmo fenômeno nas estrelas de Hércules, que parecem se abrir para deixar passar o Sol, que segue em direção a elas. Precisamente nosso ápex se encontra muito próximo de nu Herculis, estrela que “ainda” é de 5ª magnitude; com o passar do quase eterno tempo astronômico, entretanto, ela deverá crescer em magnitude. Pior de tudo é constatar que ela representa a clave de Hércules; esperemos, pois, que o herói esteja de muito bom humor quando dele nos acercarmos…

Nebulosa Anelar de Lyra

Vega – Spitzer Telescope, NASA

Ainda olhando para o Norte, agora nos primeiros graus ao leste, encontramos Lira, constelação vizinha de Hércules. Muito importante é alfa Lyrae, de magnitude zero, branco-brilhante, chamada de o “Diamante do céu”. Estamos falando de Vega, 26 anos-luz longe daqui, estrela que há dez mil anos gozava da prerrogativa de ser a estrela polar do Norte, mas que, devido ao movimento de precessão dos equinócios, viu-se destituída desta função. Entre beta e gama Lyrae, facilmente identificáveis por seus brilhos, está a nebulosa de Lira, a mais bela nebulosa do céu, bem apreciada através de um simples telescópio de lentes.

Ao leste de Lira encontramos a constelação do Cisne, que se encontra de asas abertas em seu pleno vôo noturno. Beta Cygni demarca sua cabeça, eta Cygni seu longo pescoço, alfa Cygni está nas penas de seu curto rabo, delta e epsilon Cygni marcam as extremidades de suas asas e gama Cygni está sobre o corpo, no ponto de intersecção da bela cruz desenhada. Ao norte e à frente de Deneb (alfa Cygni) que, em árabe, significa cauda, está o aglomerado Messier 39, que pode ser visto a olho nu. Outra bela nebulosa é a NGC 6960/95, próxima a zeta Cygni; sua imagem, uma miríade de pontos nacarados, recebeu o nome de Véu de Noiva ou Véu do Cisne.

Nebulosa do Véu na constelação do Cisne, resultado da explosão de uma supernova ocorrida a aprox. 50.000 anos, que vem se expandindo desde então cerca de 100 Km/seg

O leitor deverá agora voltar outra vez seus olhos para o Sul, para que possamos juntos observar a seguinte constelação zodiacal bem visível nesta estação, Sagitário, que ser encontra no alto do céu, a leste (à direita) de Escorpião.

Os antigos babilônios o viam como um guerreiro arqueiro; os egípcios o representavam como um centauro alado, buscando lançar sua flecha em direção ao desconhecido e misterioso Ocidente, mansão dos mortos e ancestrais. Na mitologia grega, Sagitário é a personificação de Quíron, o mais sábio dos centauros, pedagogo e orientador dos Argonautas, que ensinou a arte médica para Asclépio e o manejo do arco para Aquiles. Filho de Cronos e por conta disso dotado da imortalidade, foi ferido acidentalmente por uma flecha envenenada com o sangue da Hidra de Lerna, o que lhe abriu uma ferida incurável em sua coxa. Após sofrer indefinidamente, pediu a Zeus que transferisse sua imortalidade a Prometeu e que lhe permitisse morrer e descansar de sua dor. Zeus atendeu-lhe o pedido e o colocou no firmamento para dos céus inspirar os homens em seu exemplo de nobreza e retidão de caráter.

Constel.Sagitário.0.5

Mesmo carente de estrelas de primeira magnitude, Sagitário, a nona constelação zodiacal, impressiona particularmente por ocupar justamente a região celeste onde se encontra o núcleo da Via Láctea, a 28 mil anos-luz de nosso sistema, um estupendo manancial de nebulosas e aglomerados estelares. Não fosse a barreira imposta pelas nuvens de poeira interestelar a absorver a luz irradiada pela enorme concentração de estrelas que co-habitam esse nosso centro galáctico, teríamos nessa zona uma luminosidade de brilho comparável àquele refletido pela Lua.

Nebulosa Trífida

Nebulosa da Lagoa

As noites límpidas de inverno permitem uma boa exploração dessa área através de simples telescópios ou binóculos de salão. A célebre Nebulosa da Lagoa, constituída por ela propriamente (NGC 6523) e o aglomerado aberto Messier 8, mostra-se facilmente como uma mácula difusa à vista desarmada. Situa-se 5 graus ao oeste e algo ao norte de lambda Sagittarii, e tem a nebulosa Trifida como sua companheira.  Messier 22, um aglomerado globular, e Messier 23, que é aberto, podem ser vistos também a olho nu entre mu e sigma Sagittarii. Acham-se a 27 mil anos-luz e são as mais extensas estruturas desse gênero, compostas por mais de 50 mil estrelas de 10ª magnitude. Entre alfa e zeta Sagittarii, há ainda uma pequena formação estelar em semicírculo, por conta disso batizada de Coroa Austral.

Com isso, ¾ de nosso espetáculo celeste já foi por nós percorrido. Uma pequena e importante amostra do quanto somos insignificantes grãos de areia na ampulheta da eternidade cósmica. E a passagem de cada novo ciclo de estações nos permite olhar mais fundo para o infinito, num sem fim também de questionamentos e desafios. Como já disse o sábio astrofísico, quanto mais pesquisamos o universo, mais nos descobrimos a nós mesmos, em nossa frágil e, ao mesmo tempo, heróica condição humana!

Ver-nos-emos, uma vez mais, no céu de primavera!

Céu de Inverno - vista para o Norte

Céu de Inverno – vista para o Norte

Céu de Inverno - vista para o Sul

Céu de Inverno – vista para o Sul

Obs: nosso texto está em acordo com as duas cartas celestes acima, que representam uma parte do céu noturno do Hemisfério Sul, válidas para todo o inverno. Este é o mesmo céu que o leitor encontrará, por exemplo, em:

1º de junho às 00h30min

15 de junho às 23h30min,

1º de julho às 22h30min,

15 de julho às 21h30min,

1º de agosto às 20h30min e

15 de agosto às 19h30min.

N.B.: As três imagens das constelações do zodíaco aqui apresentadas, Libra, Escorpião e Sagitário foram retiradas de livros que as retratam no Hemisfério Norte; logo, identificar-la-emos respectivamente em nosso céu austral como se estivessem de “cabeça para baixo” em relação a estas três imagens suas, neste texto respectivamente postadas.

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