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Psicologia dos Contos de Fadas

PSICOLOGIA DOS CONTOS DE FADAS

Texto de Paulo Urban, publicado na Revista Planeta, edição nº 345, junho/2001;

Revista Construirnotícias, Recife (PE), edição nº 21, março/abril – 2004

Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento.

            “ERA UMA VEZ uma criança que adorava ouvir histórias… ela nada mais esperava que viver cada momento, mas a cada passo dado neste seu mundo de sonhos e fantasia, pouco a pouco, sem o perceber, ia encontrando um sentido para a vida…”

Infelizmente, muitos pais desejam ver seus filhos com as cabeças funcionando racionalmente como as suas, e acreditam que a maturidade deles dependa exclusivamente do ensinamento lógico oferecido pela maioria das escolas que, via de regra, em nossa sociedade moderna, nada mais fazem que repassar um conteúdo pedagógico desprovido de maiores significados para a vida. Esquecem-se de explorar os sentimentos como fundamental ingrediente para a formação do caráter e, ainda que bem alfabetizem, desconsideram os contos de fadas como se estes só gerassem confusões quanto aos conceitos sólidos de realidade que devem ser ensinados às crianças. Pecam gravemente por isso.

Afinal, a sabedoria não é coisa que nasça pronta como a deusa Palas Atena, que, inteiramente formada, pulou fora da cabeça de Zeus; é antes algo delicado, que se constrói desde os tenros anos da infância, e que passa necessariamente por um estágio primevo, irracional, de extraordinário potencial que só se desdobrará convenientemente num bem explorado e maduro psiquismo. Obrigatoriamente, isto nos leva à necessidade de lidar com nossos sentimentos. O mundo interior, desconhecido pela consciência intelectualizada, encerra segredos legítimos, guarda metade de nós mesmos, e sua assimilação é imprescindível para todo aquele que deseje conhecer-se melhor ou que esteja buscando respostas honestas para os enigmas da existência.

O Eterno Imaginário, óleo sobre tela de John Anster

O Eterno Imaginário, óleo sobre tela de John Anster

Nesse particular, os contos de fada cumprem relevante papel. São expressão cristalina e simples de nosso mundo psicológico profundo. De estrutura mais simples que os mitos e as lendas, mas de conteúdo muito mais rico que o mero teor moral encontrado na maioria das fábulas, são os contos de fada a fórmula mágica capaz de envolver a atenção das crianças, despertando-lhes (idem nos adultos sensíveis) sentimentos e valores intuitivos que clamam por um desenvolvimento justo, tão pleno quanto possa vir a ser o do prestigiado intelecto.

Em essência, os contos de fada podem ser vistos como pequenas obras de arte capazes que são de nos envolver em seu enredo, de nos instigar a mente e comover-nos com a sorte de seus personagens. Causam impacto em nosso psiquismo porque tratam das experiências cotidianas, permitindo que nos identifiquemos com as dificuldades ou alegrias de seus heróis, cujos feitos narrados expressam, em suma, a condição humana frente às provações da vida. Não fossem assim tão verdadeiros ao simbolizar nosso caminho pessoal de desenvolvimento, apresentando-nos as situações críticas de escolha que invariavelmente enfrentamos, não despertariam nem sequer o interesse nas crianças que buscam neles, além da diversão, um aprendizado apropriado à sua segurança. Nesse processo, cada criança depreende suas próprias lições dos contos de fadas que ouve, sempre consoante seu momento de vida, e extrai das narrativas, ainda que inconscientemente, o que de melhor possa aproveitar para aí ser aplicado. Oportunamente, pede que seus pais lhes contem de novo esta ou aquela história, quando revive sentimentos que vão sendo trabalhados a cada repetição do drama, ampliando assim os significados aprendidos ou substituindo-os por outros mais eficientes, conforme as necessidades do momento.

Desde a remotíssima Antigüidade (especialistas apontam para uma tradição oral que começa há mais de 25 mil anos), a relação de qualquer criança com o mundo sempre dependeu dos relatos míticos e religiosos, cujos elementos básicos constituintes encontram-se espalhados por uma miríade de células narrativas de caráter mágico, as quais denominamos contos de fadas.

Conto dos Dois Irmãos – Papiro de Orbiney – British Museum

Platão, século IV a.C., no Livro III da República, propunha educar seus cidadãos por um mito próprio que lhes explicasse a origem de suas castas; em outros escritos informa que em seu tempo era função das mulheres narrar às crianças as alegorias, às quais chamou de mythoi. Data histórica mais antiga nos leva diretamente à fonte do popular tema dos “Dois Irmãos”, um dos quais geralmente é bom, o outro nem tanto, encontrado em quase todos os folclores. Ela se acha escrita no papiro egípcio Orbiney (nome de seu antigo possuidor) datado de 1210 a.C., que se encontra completo e preservado no Museu Britânico. Relata as desavenças entre dois irmãos, projetadas na dupla de deuses Anúbis e Bata, que vivem brigando entre si, mas dependem mutuamente um do outro. Entretanto, a ocorrência desta história parece ser ainda mais arcaica.

Assim como os mitos e as lendas, os contos de fada e as fábulas provêm do alvorecer da cultura humana e acham-se espalhados por todas as civilizações. Os registros ocidentais mais antigos nos levam a Esopo, herói popular da Trácia, a quem se reputa o ofício de ter sido no século VI a.C. um proeminente contador de fábulas. Aristóteles, em 330 a.C., relata que Esopo, certa feita, como advogado de defesa de um político corrupto teria se valido de uma de suas histórias, “A raposa e o ouriço”, para defender o seu cliente. A raposa estava tomada por pulgas, e o ouriço propôs-se a tratar dela. Com receio de se machucar ainda mais, ela argumenta: “Sr. Ouriço, deixe estar, se me retira estas pulgas já gordinhas, que nem me chupar podem mais, logo outras sedentas por sangue ocuparão seu lugar”. Ao que completou dizendo aos juízes que se condenassem à morte o réu já enriquecido, outros não tão ricos, mas ávidos para roubar, viriam a ocupar sua cadeira!

Esopo não escrevia suas fábulas. Até surgirem as duas coletâneas mais antigas desse gênero, datadas do ano 1 d.C., sua transmissão era exclusivamente oral. A primeira delas foi escrita em latim por Fedro, que traduziu Esopo para os romanos; a outra, em grego, é da autoria de Babrius.

A primeira coleção de contos, porém, com motivos do folclore europeu, denominada Gesta Romanorum, só surgiria no século XIV, escrita em latim. Precedeu em poucos anos As Mil e uma Noites, famosos contos árabes de magia e aventura, de origem persa, que datam dos séculos XIV a XVI. Tudo começa com a desilusão do califa Shahryar ao descobrir que seu irmão Shazeman era traído pela esposa. Resolve então que nunca deixaria que consigo acontecesse tamanha desonra, e decide dormir com mulheres sempre virgens para no dia seguinte entregá-las a seus soldados para a morte. Até que a corajosa Sherazade, filha de seu principal vizir, contrariando os conselhos de seu pai, oferece-se para o califa. Propondo-se a evitar maior matança, passa a contar-lhe todas as noites, após se amarem, uma história que ela sempre interrompia em seu ponto culminante, fazendo com que seu amo a poupasse até a noite seguinte, quando então, continuava a narrativa.

Mil e Uma Noites.0.3

As Mil e uma Noites têm por pano de fundo o apogeu do mundo árabe alcançado durante o reinado de Harum-el-Raschid, quinto califa da dinastia dos Abácidas, século VIII d.C. Aladim e o gênio da lâmpada, Simbá, o marujo, e Ali Babá são alguns dos personagens que por três anos mantiveram viva Sherazade, até que, por fim, estando o califa completamente apaixonado por ela e transformado interiormente pela beleza de suas histórias, liberta-se de sua depressão, suspende a pena e a pede em casamento. Os contos das “Noites Árabes” haviam servido a el-Raschid como verdadeira terapia! A propósito, este é o procedimento adotado desde a Antigüidade pela medicina hindu, chamada Ayurveda, na qual os pacientes são convidados a meditar sobre contos de fadas para que suas mentes se purifiquem, condição prévia para que qualquer cura seja alcançada.

O título dado às histórias de Sherazade, assim como o modelo adotado por Bocaccio (1313-1375) no Decameron, bem serviram ao italiano Giovanni Straparola (1480-1557) que imaginou uma reunião de jovens, isolados do mundo, entretidos em suas narrativas de fadas. O conjunto, batizado por Piacevoli Notti (Noites de Prazer), foi publicado de 1550 a 1553. Muitas de suas idéias seriam depois adaptadas pelo francês Charles Perrault (1628-1703), até nossos dias lembrado por seus Contos da Mamãe Gansa, que vieram a público em 1697 trazendo uma versão de “Chapeuzinho Vermelho” em que o lobo sai vitorioso da história, após haver jantado a vovó e comido em seguida a menina de sobremesa.  Chapeuzinho Vermelho.0.3 O literato justificava-se dizendo que sua narrativa era de valor eminentemente moral, e que as crianças bem deviam saber o preço da desobediência aos pais. Foi seu contemporâneo Jean de La Fontaine (1621-1695), imortalizado por suas Fábulas, publicadas entre 1668 e 1694, de cunho igualmente moral, que passaram a ser contadas nas escolas da época e permanecem populares até hoje. O alemão Gotthold Lessing, por considerar as sátiras de La Fontaine muito leves, em 1759 edita seu Fabels (Fábulas), cujo teor trazia lições bem mais severas que as da moral francesa.

La Fontaine.0.4

Wilhelm e Jacob Grimm

Wilhelm e Jacob Grimm

Somente no século seguinte, porém, é que o jardim da infância floresceria definitivamente com a paciente pesquisa feita pelos irmãos Grimm na Alemanha. Os filólogos Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859), lingüistas e folcloristas, colecionaram contos de encantamento por toda parte da Europa, e lançaram de 1812 a 1815, em dois tomos, Os Contos de Fadas dos Irmãos Grimm, que, desde então, vêm sendo adaptados em quase todos os idiomas, e transformados em elemento essencial da literatura infantil. Jacob era o mais intelectualizado dos irmãos, mas Wilhelm era quem detinha a verve da poesia; juntos chegaram a editar 210 histórias, maior parte delas encontrada nos dois volumes originais. Em 1983, descobriu-se um manuscrito com conto inédito na coleção dos Grimm.

Hans C. Andersen, 1894, tela de A. Kücher

Hans C. Andersen, 1894, tela de A. Kücher

Outro autor de novelas, peças de teatro, roteiros de viagens, memórias e poesias, consagrado por seus contos de fada, é o dinamarquês Hans Christian Andersen (1802-1875), filho de um humilde sapateiro e de uma iletrada mãe, mulher supersticiosa que o influenciou bastante por passar-lhe a tradição oral do campo. Em 1835 publicou Histórias Contadas às Crianças, com seus quatro primeiros contos. Até 1872, produziu 168 histórias, logo traduzidas em diversos países, comumente publicadas em séries de quatro narrativas por livro. Combinando à fantasia infantil sua aguçada sabedoria, encantou igualmente o público adulto, repetindo a mística do fenômeno provocado pelos irmãos Grimm; hoje sua obra acha-se traduzida em mais de cem línguas.

Ainda no século XIX, os românticos alemães Goethe e Ernst Hoffman, e o inglês Oscar Wilde são exemplos dos que também se dedicaram à literatura infantil. E citemos com orgulho Monteiro Lobato (1882-1948) que, preocupado em edificar os jovens, produziu extensa literatura infanto-juvenil de cunho pedagógico, adaptando para as crianças brasileiras as Fábulas de Esopo. Monteiro Lobato.0.3

Mas por que nos impressionam tanto os contos de fada? Por certo, não apenas pelos expoentes citados que se dedicaram à sua compilação, visto que tais contos sempre foram populares como tradição oral, mas, antes, porque suas histórias são instigantes. Não há como alcançar completamente seu sentido em termos puramente intelectuais, fato que nos desperta a percepção intuitiva.

A fantasia irracional a ponto de permitir que a vovó engolida pelo lobo mau permaneça viva em sua barriga até ser salva, ou que Bela Adormecida durma enfeitiçada um sono de cem anos, e João suba num pé de feijão até alcançar no céu o castelo de um gigante -, justamente pelo inverossímil que expõe, provoca uma reviravolta em nosso mundo psíquico que, estimulado, se aguça na tentativa de compreendê-la. E não há como explicá-la pelos padrões da razão metódica. A história de fadas é per si sua melhor explicação, do mesmo modo que as obras de arte encerram aspectos que fogem do alcance do intelecto, já que suscitam emoções capazes de comover os que diante delas se colocam. O significado desses contos está guardado na totalidade de seu conjunto, perpassado pelos fios invisíveis de sua trama narrativa. Claro que, diante desse mistério, muitas formas de abordá-lo são possíveis e igualmente válidas, posto que acrescentam luz à sua compreensão.

O psicanalista austríaco Bruno Bettelheim (1903-1990), por exemplo, em seu precioso estudo Usos do Encantamento: significado e importância dos contos de fadas (em Português, ‘A Psicanálise dos Contos de Fada’, ed. Paz e Terra), argumenta: “Os psicanalistas freudianos se preocupam em mostrar que tipo de material reprimido ou inconsciente está subjacente nos mitos e contos de fada, e como estes se relacionam aos sonhos e devaneios. Já os junguianos, ele continua, frisam em acréscimo que as figuras e os acontecimentos destas histórias estão de acordo com fenômenos arquetípicos, e simbolicamente sugerem a necessidade de se atingir um estado mais elevado de autoconfiança, uma renovação interna conseguida à custa de forças inconscientes que se tornam disponíveis ao indivíduo”.

O próprio Jung disse certa vez que “nos contos de fadas melhor podemos estudar a anatomia comparada da psique”. Quis dizer com isso, explica-nos sua discípula Marie Louise von Franz em Interpretação dos Contos de Fadas (ed. Paulus) que os contos de fadas espelham a estrutura mais simples, ou o “esqueleto” da psique, e que suas muitas peças acabam por fundir-se, compondo os grandes mitos que expressam toda uma produção cultural mais elaborada. O estudioso clássico E. Schwizer demonstra como, por exemplo, o mito de Hércules foi sendo aos poucos espontaneamente “montado” a partir de histórias separadas, todas temas centrais de seus respectivos contos de fadas.

Fenômeno semelhante ocorre, aponta-o o historiador Homero Pimentel, no campo da literatura clássica, onde se registra a corriqueira absorção de temas arquetípicos encontráveis nos contos de fadas, como a figura típica da madrasta má que ordena a seu servo que mate Branca de Neve, bem aproveitada por Shakespeare em sua peça Péricles, Príncipe de Tiro. E talvez o literato britânico não alcançasse tanto sucesso não fosse seu costume de ler contos de fadas.

Branca de Neve

Branca de Neve, a propósito, cuja narrativa remonta há mais de mil anos, permite inúmeras interpretações à luz da psicanálise ou da psicologia junguiana. Prefiro ver neste conto, contudo, uma das jóias raras produzidas pelo saber dos alquimistas. Na alegoria de “Branca de Neve” estão depositados inúmeros segredos do ocultismo. A rainha, que morre ao parir, fora bem clara em seu desejo: “Quero ter uma filha de pele alva como a neve, lábios vermelhos como o sangue, e cabelos tão negros quanto a noite!” É como começam as versões originais deste fabuloso conto. Implícita está, desde o início, a alusão às três grandes fases da transmutação alquímica: albedo (o branco), rubedo (o vermelho) e nigredo (o negro). Expulsa de seu castelo aos sete anos, a menina é abandonada pelo servo na floresta; miticamente, este é o lugar desconhecido onde primeiro nos perdemos na busca da verdade. A casa dos sete anões representa o núcleo orientador capaz de nos levar de volta ao caminho iniciático dos alquimistas. E os anões, todos mineradores da caverna, representam a necessidade de trabalharmos nossas entranhas em busca do ouro filosofal. Na alegoria do sete acham-se velados os sete metais alquímicos, bem como seus sete planetas regentes, também os sete degraus para o preparo da Pedra Filosofal. A madrasta, por sua vez, traduz arquetipicamente os perigos do caminho de provações, revelando-se como bruxa perdida (por estar presa à vaidade) na busca da beleza eterna, enganada quanto à natureza do “Elixir da Longa Vida”. Ela morrerá em desgraça, e Branca de Neve, após pagar o preço de sua ingenuidade, acabará por renascer de sua morte simbólica nos braços de seu príncipe encantado, a representar a coroação dos ideais da alma. Mas a complexidade desta análise alquímica nos levaria a outra matéria; paremos por aqui. Parafraseando Michael Ende, autor da saga A História sem Fim: “Esta é uma outra história e terá de ser contada em outra ocasião…”

“E quanto àquela criança que adorava ouvir histórias? O mais importante que resta disso tudo é que nunca esqueçamos a lição… crianças, jovens ou adultos, no mundo das fadas todos seguimos encantados e… FELIZES PARA SEMPRE !” 

P.S: Tão logo termino de escrever este texto (maio 2001), recebo nota do falecimento de Maria Clara Machado. Agradeço a ela; felizes das crianças que, como eu, sabem brincar de Fantasminha Pluft.

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