Plutão Astronômico
Ao poente da sexta-feira, 13 de março, Alan e eu éramos admitidos ao observatório-biblioteca de mestre Nicolau. Tão pronto nos instalamos à sua mesa de trabalhos, mapas e livros abertos sobre ela, e à luz de seus vários candelabros, taças plenas, sorvíamos antiga safra de O Corvo, um dos tintos de sua preferência, assim nos disse o ancião:
— Nada mais oportuno que uma sexta 13 para tratarmos do Senhor dos Mortos. A propósito, a efeméride de hoje é de dupla sincronicidade!
Que as sextas-feiras 13 fossem tradicionalmente relacionadas ao mau agouro, à bruxaria e às criaturas do mundo sobrenatural, bem sabíamos, mas por que exatamente a de hoje era duplamente significativa, bem, isso pedia explicação. Notando nosso quê de indagação, o mestre deu a nota:
— Nono planeta mais afastado a orbitar o Sol, Plutão foi descoberto em 1930, também num 13 de março, precisamente há 90 anos, quando o mundo Ocidental vivia sua ‘grande depressão’, consequência da crise econômica deflagrada em 1929, que se arrastaria por toda a década seguinte e ainda até o final da II Grande Guerra.
— Meu avô contou-me várias histórias desta época – observei – o crash da bolsa de Nova Iorque, grandes falências, a paralização das indústrias, um vertiginoso desemprego…
— Deveras! Um tremendo solavanco numa sociedade pretensamente organizada. Esses deuses sabem sempre a exata hora a dar seu ar da graça; é como se Plutão tivesse se levantado das profundezas apenas para pôr sua assinatura no quadro dos acontecimentos.
— E por onde ele andava ao ser descoberto? – perguntou Alan
— Quem pela primeira vez o observou foi o estadunidense Clyde Tombaugh (1906-1977), membro do observatório Lowell, fundado em 1894 em Flagstaff, Arizona. Naquele 13 de março Plutão passeava pelo signo de Câncer.
— Pelo que sei, recebeu seu nome em homenagem a Percival Lowell (1855-1916), fundador do referido observatório, que dedicou décadas de sua vida a encontrá-lo – adiantei-me – haja vista as iniciais do cientista, a compor as duas primeiras letras do nome do planeta.
— Mero folclore essa história!
— ??
— A verdade é outra. O nome foi proposto por Venetia Burney, uma garota de onze anos, natural de Oxford. Interessada em mitologia clássica, teria dito a seu avô, Falconer Madan, um bibliotecário aposentado, que não haveria nome mais propício que Plutão a batizar um corpo assim ‘escuro, e tão distante de nós quanto gelado’. Impressionado pela assertividade da neta, Madan passou a sugestão a Herbert Hall Turner, professor em Oxford, que, por sua vez, telegrafou imediatamente para seus colegas acadêmicos nos Estados Unidos.
— Essas crianças! Sempre surpreendendo!
Sorrindo, Nicolau continuou:
— Tombaugh tinha 23 anos ao fazer sua descoberta. Depois de quase um ano de meticuloso estudo fotográfico, esmiuçando determinadas áreas trans-netunianas, já era finzinho de janeiro quando percebeu um corpo que sorrateiramente se movia contra o fundo das estrelas fixas. Perseguindo-o em sua órbita, logo concluiu que se tratava do tal ‘planeta X’, conforme previsto por Lowell. Aos 13 de março, sem que lhe restasse qualquer sombra de dúvida, comunicou a descoberta ao Harvard College Observatory.
Tal qual se dava nesses encontros, malgrado os poucos minutos de conversa, Alan e eu já estávamos magneticamente abduzidos pela arte do ancião em narrar suas histórias:
— Seguindo o protocolo, cabia ao Observatório Lowell a prerrogativa de batizar o novo astro. Milhares de sugestões lhes chegaram, desde Atlas até Zynal. A viúva de Percival, num arroubo de humildade chegou até a propor que dessem seu próprio nome ao planeta: Constance.
Olhamos admirados.
— O constrangimento não foi pequeno, mas souberam driblá-la em seu intento. A sanar as divergências, no 24 de março houve uma votação. Cada membro do Observatório deveria escolher um único nome de uma derradeira lista que se reduzira a apenas três opções: Minerva (que já era nome de asteroide); Cronos, nome grego de Saturno (esses astrônomos esbanjam criatividade!); e Plutão. Como o bom senso prevaleceu, Plutão foi eleito por unanimidade. E à guria Venetia Burney o Observatório enviou a exorbitante quantia de 5 libras esterlinas como incentivo.
Já não fossem fascinantes as histórias das descobertas astronômicas, Nicolau imprimia a elas um elegante romantismo:
— O insólito ficaria por conta de que, pouco depois, concluir-se-ia que os cálculos de Percival Lowell, os mesmo sobre os quais se debruçara Tombaugh, eram de todo inconsistentes. Sim, a descoberta de Plutão se dera mais por acidente que por dedução matemática. As discrepâncias na órbita de Netuno que teriam levado Tombaugh a procurar por ele em determinada área celeste explicavam-se perfeitamente pela interferência de Urano, ou seja, em nada diziam respeito a algum corpo que orbitasse mais além. O achado de Plutão resultava, pois, de fabuloso golpe de sorte. Tombaugh dera com a agulha num palheiro cósmico!
Tentei imaginar qual não seria o incomensurável palheiro. Alan pareceu-me, fazia o mesmo, buscava com os olhos medir os limites do Universo. E exclamou:
— Seus relatos são tão realistas, mestre Nicolau, que não duvidaria se nos dissesse que esteve lá presente a testemunhar esses fatos todos.
O ancião deu uma risadinha. Dando uns passos em volta da mesa, posicionando-se debaixo da tela a óleo que retratava o conde de Saint Germain, assim prosseguiu:
— Nem Lowell, nem Tombaugh… não, não conheci nenhum deles pessoalmente. Em compensação, privei-me por alguns anos do convívio do marrano Raphael Baldaya, a quem reputo tenha sido um dos grandes, senão o maior astrólogo do século XX. Foi ele quem me iniciou nesta oculta arte de interpretar os astros.
— O nome não me soa estranho. Não teria sido um dos antigos mestres de nossa augusta Ordem? – perguntei.
— Não exatamente; Baldaya nunca esteve ligado à TAO. Entretanto, galgou os secretos graus da Ordem Templária de Portugal. Suas contribuições para a astrologia moderna são notáveis, especialmente seus Tratados, peças de profunda erudição. Enquanto a maioria dos astrólogos de seu tempo perdia-se em conceitos cartesianos, tentando fazer caber a marteladas Plutão como regente de Sagitário, teimosia esta que se arrastou por quase duas décadas, mestre Baldaya, cirúrgico como ele só, foi o primeiro ocidental a atribuir-lhe a regência de Escorpião, ainda em 1930. Diante das críticas que recebeu de seus pares, resoluto, manteve seu entendimento, que, por sinal, prevaleceu.
— E de onde se abstrai tal relação? – interveio Alan – como saber que Plutão rege Escorpião, e não Sagitário, como quiseram crer outros tantos?
— Crucial questão. Roga a Tradição, cabe à mitologia, mãe arquetípica de toda astrologia, responder devidamente a isso.
Pausa dramática a olhar-nos além de nossos olhos, Nicolau polidamente sorveu de seu cálice. Sentando-se novamente à mesa, afastou uns livros de modo a depositar sua taça perto de si. E pôs-se a deslindar sua empolgante narrativa…
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… este texto continua em … “Plutão Mitológico – ATO I”
Mas que delícia de texto, e quão saudosa eu já estava do Alan e de Mestre Nicolau! Que lembrança carinhosa, caro Amigo da Alma, fiquei muito contente! Ainda mais que o tema trata APENAS de meu regente solar e lunar, Senhor das Profundezas e … mas que danado este Mestre Nicolau que não deixou sequer uma pista sobre Raphael Baldaya, cavalheiro de grande interesse, sigo ATO I… (impactou-me amorosamente a referência de ‘Pai das Estações’ para Plutão, um tratamento mais meritório e generoso que o usual!).