PSICOTERAPIA do ENCANTAMENTO
Explorando a MITOLOGIA PESSOAL
Texto de Paulo Urban, publicado na Revista Planeta, edição 354, março/2002
Excepcionalmente, apresentamos aqui as ilustrações de Christiane Messias que, sensivelmente criativa, em especial as concebeu para acompanhar esta matéria quando de sua original publicação.
Paulo Urban é médico psiquiatra e criador da Psicoterapia do Encantamento
Podemos definir os mitos como relatos fantásticos que encontram lugar fora do tempo definido. São histórias de caráter simbólico, dotadas de lógica própria, via de regra irracional, originalmente criadas e preservadas pela tradição oral. Seus protagonistas, geralmente são divindades que encarnam forças primordiais da natureza ou aspectos fundamentais da condição humana.
O termo provém do grego mûthos, a significar fábula ou relato, derivado do verbo muthéin, que expressa o ato de inventar histórias. Etimologicamente, está ligado a míthos, que se traduz por fio de teia ou filamento. De fato, é fácil constatar o quanto os mitos têm esse poder de nos enredar em suas tramas alegóricas, prendendo-nos ao imaginário coletivo que os transfere de geração em geração, ao longo dos milênios, perpetuando assim as verdades e os costumes das civilizações que os criam.
Curiosamente, o estudo comparativo das mitologias nos leva a perceber a ocorrência de padrões temáticos universais que se disfarçam aqui e ali sob as mais distintas roupagens, conforme as diferentes culturas que os representam. Histórias do dilúvio, a crença no mundo dos mortos, a lenda do roubo do fogo sagrado, os mitos que personificam a Grande Mãe, ou a figura do bebê predestinado, achado numa cesta à deriva num rio, também a imagem do herói que nasce da virgem, a existência de ilhas utópicas etc, são apenas alguns dos incontáveis grandes temas que se repetem e estão por toda parte. Como entender esse fenômeno? As respostas possíveis não são simples.
Thomas Mann (1875-1955), alemão agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura de 1929, em seu quarteto José e seus Irmãos, escreveu: “Muito fundo é o abismo do passado. Não poderíamos dizê-lo sem fundo? Quanto mais fundo mergulhamos (…), mais descobrimos que as origens da humanidade, sua história e cultura, se revelam insondáveis”.
O mitólogo Joseph Campbell (1904-1987), em sua obra As Máscaras de Deus, aceita o desafio e propõe-se a questionar essa assertiva. Resumamos sua tese: o estudioso revela que por debaixo do tapete arqueológico deixado pelas civilizações primitivas, que constituem um primeiro plano da pré-história de nossa raça, encontramos uma segunda camada referente às centenas de milênios nos quais viveram nossos antepassados remotos, os mais primitivos coletores de raízes e insetos que habitaram o planeta há aproximadamente meio milhão de anos.
Desse período data, por exemplo, o Pithecantropus erectus, nome científico que significa “homem-macaco que anda em pé”, cujos vestígios foram achados pelo arqueólogo francês Eugène Dubois, em 1891, na Java central, Indonésia. Contemporâneo do homem de Java é o de Pequim, Sinanthropus pekinensis, que igualmente apresentava um cérebro de 900cm3, meio caminho entre o gorila mais inteligente (600cm3) e o homem moderno, já que temos em média 1.450cm3 de massa pensante. Desenterrado entre 1921 e 1939 na caverna Choukoutien, o Homem de Pequim surpreendeu o mundo; junto dele, além de uma impressionante coleção de utensílios de pedra, ossos e crânios rachados, foram encontradas lareiras! Poderíamos chamá-lo de o primeiro Prometeu, já que nenhuma outra escavação de restos proto-humanos mais antigos revelou que o fogo já tivesse sido dominado. Ademais, vários crânios encontrados estavam furados, haviam sido trepanados com precisa técnica a fim de que seu conteúdo fosse sugado em algum estranho ritual. Que crenças teriam tido estes pré-humanos? Como operava o rudimentar psiquismo desse nosso antepassado?
Campbell vai além e explora uma terceira derradeira camada, muito abaixo do último horizonte da humanidade, mais profunda e escura: ele cita a dança ritualística como prova de padrões arcaicos de comportamento, igualmente encontrada entre os macacos, os pássaros e os peixes, até mesmo entre as abelhas. E questiona se o homem, como os demais seres da criação, não possuiria alguma tendência inata para reagir de forma racial, estritamente padronizada, a certos sinais do meio ou de sua própria espécie. A psicologia profunda, ao estudar o fenômeno onírico, oferece alguma luz e contribui para a resposta.
O marco inicial da investigação científica da alma fora cravado na clínica neurológica de Salpêtrière, em Paris, pelo professor de anatomia patológica Jean Martin Charcot (1825-1893), que se debruçara sobre os fenômenos da histeria, da epilepsia, das paralisias e da hipnose. Dois de seus mais promissores discípulos, os jovens Sigmund Freud (1856-1939) e Carl G. Jung (1875-1961), fizeram florescer em suas brilhantes carreiras algo da força e direção do mestre, e detiveram-se amplamente sobre o estudo dos sonhos. Freud foi quem primeiro observou que muitas vezes sonhamos com elementos recorrentes que nada têm a ver com a experiência pessoal. Denominou de resíduos arcaicos tais formas mentais cuja presença não encontra explicação alguma na vida do indivíduo e que parecem ser traços primitivos representantes da herança comum ao espírito humano.
Partindo dessa idéia, Jung observou que, assim como nosso corpo é um verdadeiro museu de órgãos, cada qual com sua longa evolução histórica e filogenética, devemos esperar achar também na mente uma organização análoga. A mente, afinal, não poderia ser um produto que existisse sem história evolutiva, desvinculada do corpo, sem ter sofrido todo um desenvolvimento biológico, pré-histórico e inconsciente desde seus primórdios, quando originalmente nossa psique esteve próxima à dos animais. Essa psique, infinitamente antiga, explica Jung, é o arcabouço de nossa mente, assim como a estrutura de nosso corpo se fundamenta no molde anatômico dos mamíferos em geral. Assim como o biólogo necessita de uma anatomia comparada para compreender a evolução humana, de mesmo modo o pesquisador da mente requer uma “anatomia comparada da psique” para melhor mensurar e compreender os seus fenômenos. Jung entende que qualquer um que se aventure nesse campo deva bem avaliar as imagens oníricas do homem moderno, relacionando-as por meio das melhores analogias possíveis, com as imagens dos motivos mitológicos recorrentes nas mais distantes culturas, marcas estas coletivas de nosso passado mais remoto. Em outras palavras, Jung pede ao psicólogo que tenha experiência suficiente não só de sonhos e outras expressões da atividade inconsciente, mas também da mitologia em seu sentido mais amplo, bagagem sem a qual tais analogias não são devidamente identificadas.
Jung chamou de arquétipos (o nome quer dizer imagens ou padrões primordiais) os tais resíduos arcaicos anteriormente apontados por Freud, e ampliou-lhes a idéia. Tal conceito junguiano costuma ser criticado por todos aqueles que desconhecem a psicologia profunda dos sonhos e suas relações possíveis com os mitos. Muitos entenderam erradamente que os arquétipos pudessem ser herdados geneticamente, o que seria uma tremenda superstição! O que se transmite de geração a geração desde os primórdios é simplesmente a tendência da mente a formar representações simbólicas, padronizadas em seu sentido genérico, mas extremamente variáveis em seus detalhes; fenômeno esse que origina um inesgotável universo de formas míticas fundadas sobre umas poucas configurações matriciais arcaicas, comuns a toda espécie humana, que nada mais são que os arquétipos. O arquétipo é, na realidade, uma tendência instintiva, dotada de direção e intenção, tão marcada como o impulso das aves para fazer seu ninho, ou das formigas para se organizar em colônias. A origem desse impulso não é conhecida, nem mesmo é possível explicar sua transmissão por descendência direta ou fecundação cruzada.
Devemos ainda compreender que os símbolos do universo onírico são, em sua maioria, manifestações do psiquismo que escapam ao controle consciente. Conforme vemos, sentido e intenção não são exclusividade da mente; permeiam toda a natureza vivente, posto não haver diferença entre desenvolvimento orgânico e psíquico. Em último grau, a partir das idéias de Jung e da comprovação que a física quântica tem cada vez mais oferecido a seus conceitos, posso adiantar que nem mesmo diferenças existem entre matéria e psiquismo, mesmo porque os fenômenos inconscientes não são prerrogativas exclusivas deste último. Entendo que esteja aqui a oportuna brecha para pensarmos sem preconceitos científicos ou religiosos o fenômeno conhecido por poltergeist, assunto para uma outra matéria. O inconsciente tem potencial inconcebível, capaz de se atualizar em qualquer tipo de manifestação natural, sejam seus fenômenos deflagrados algo comum ou extraordinário. Dentre os mais comuns citemos a perfeição com que a aranha tece sua teia, ou o desabrochar de uma rosa, ocorrências essas tão naturais e espontâneas quanto a criação de símbolos pela psique; e todo sonho é evidência disso.
É, portanto, através dos sonhos que as forças instintivas e arquetípicas influenciam nossa atividade consciente, e conforme o impacto que sofremos de nosso conteúdo inconsciente, colecionamos boas ou más experiências, capazes de gerar processos neuróticos, psicóticos ou saudáveis, isso sem falar das vivências transcendentes que ampliam e alteram o estado de nossa consciência. Chegamos assim a uma das raras verdades do campo psicológico, a de que todo indivíduo é sempre uma realidade única. Quanto mais nos afastarmos em direção ao gênero, mais possibilidades temos de errar em nossa pretensão de interpretar os fenômenos psíquicos que se apresentam em cada ser particular. Se, por um lado, precisamos buscar nos mistérios enterrados a compreensão de nosso presente, e necessitamos dos mitos para avaliar a produção simbólica da alma, por outro, não devemos esquecer que cada sonho diz respeito antes de tudo ao sujeito que o sonha, e traz em si toda uma mitologia particular, refratada pelo prisma do inconsciente pessoal.
Por isso tudo, entendo estar aí a chave para a compreensão da natureza humana, ao menos uma possibilidade a mais de entrarmos em nossos velhos templos escondidos, dando seqüência à investigação arqueopsicológica de Freud e de Jung; também a de J. Campbell, que tantas considerações teceu acerca de nosso mundo imponderável interior, divinamente mapeado pela mitologia universal.
Seguindo os faróis deixados por Jung e as trilhas analógicas desenhadas na carta náutica da mitologia, aventuro-me, feito Ulisses, na Odisséia de compreender o psiquismo, em busca da Ítaca transpessoal, integradora e absoluta. Mas, claro, posso ser também Teseu procurando sair do labirinto em que está presa a psicologia toda. É nesse terreno de intrincados meandros – a alma humana – que procuro desenvolver minha clínica e encontrar elementos que facilitem a autopercepção de todo aquele que deseja honestamente desatar seus nós psíquicos, ou simplesmente conhecer-se um pouco mais profundamente.
A psicologia analítica é meu fio de Ariadne, é meu referencial teórico; a hiperventilação (técnica chamada pelo psiquiatra Stanislav Grof de holotropia) e outros exercícios respiratórios orientais são o instrumento propiciador de insigths e vislumbres, facilitadores que são de estados alterados de consciência, a nos orientar para o portal da experiência transpessoal. Chamo esta minha abordagem terapêutica, cuja técnica venho desenvolvendo ao longo dos anos de clínica psiquiátrica e psicoterápica, de Terapia do Encantamento.
Nesta linha de trabalho, valho-me também de técnicas de RPG (Role Playing Games) aplicada ao processo terapêutico que, em português, prefiro chamar de dramatização interativa, uma interlocução criativa entre terapeuta e paciente, com o propósito de levar este último no bojo de suas fantasias a vivenciar situações críticas de seu universo mítico pessoal, na intenção de que encontre dentro de si os recursos que devem ser reorganizados, a fim de que o paciente aprenda a lidar melhor com seus conflitos, que inevitavelmente vêm à tona conforme evolui a terapia. Para que o ensaio funcione, claro, há regras a serem cumpridas; assim como o xadrez que se desenvolve sobre o mesmo tabuleiro há milênios, a dramatização interativa, quando quer que jogada, revela-se absolutamente nova e envolvente.
A partir de uma primeira entrevista tem início a primeira fase do processo, a ancoragem, cujas sessões servem para trazer o aporte seguro e necessário sem o qual o posterior desenvolvimento do trabalho não seria bem aproveitado. Evidentemente, não se escapa aqui dos moldes clássicos; Freud e Jung têm indiscutível razão: toda terapia começa pelo binômio Transferência/Contra-transferência, quando paciente e terapeuta projetam cada qual sobre o outro seus primeiros sentimentos. Chamo essa inevitável ocorrência de matriz terapêutica, destinada a estabelecer sintonias (incluindo as não verbais) entre paciente e analista, momento em que a empatia fala mais alto e estabelece toda uma trama original sobre a qual o encantamento irá operar suas mágicas. Quando há simpatia, Paracelso já o dizia, a ação é curativa. Caso o fenômeno suscite antipatias, deve o analista compreender que talvez esteja diante de um caso que fugirá mais cedo ou mais tarde à sua competência, talvez em virtude de aspectos psicológicos seus, que deverão ser oportunamente trabalhados em prol de seu aprimoramento. Nesse caso, a honestidade profissional manda recusar o paciente, propondo a ele algum outro tratamento. Caso haja simpatia, na acepção alquímica do termo, a Psicoterapia do Encantamento abre as cortinas para que se inicie o espetáculo da alma.
A cada sessão, o paciente inicia o jogo atualizando sua rápida autobiografia verbal. Mas o trabalho pode envolver sessões especiais, em grupo ou não, quando há exercícios respiratórios, de visualização, ou iniciações ritualísticas reservadas, pelas quais se busca encenar os dramas míticos da existência.
As primeiras sessões se destinam, entre outros objetivos, à criação da Figura Conselheira, uma espécie de daimon de Sócrates, ou voz interior, personalizado por Carlos Castañeda como o aliado. Alguns pacientes preferem dar vida à imagem de um xamã, outros criam um alquimista particular. Jung, por exemplo, revela-nos em suas Memórias, Sonhos e Reflexões, obra autobiográfica, que dialogava profundamente com três personagens: Elias, Salomé, e a serpente. Neste exercício por ele batizado de imaginação ativa, mais tarde surgiria Filemon a compor sua tétrade alquímica. Por meio de constantes diálogos com esses seus “conselheiros”, Jung compilou em sua juventude um manuscrito gótico, o Livro Vermelho; no qual elabora esteticamente as suas fantasias. Mais tarde, em 1916, processo semelhante deu origem a seu texto gnóstico intitulado Sete Sermões aos Mortos. Um paciente meu, ateu, curiosamente escolheu como seu conselheiro a figura de um padre confessor. Outro preferiu eleger o filósofo Aristóteles para orientá-lo em momentos de dúvida.
A terapia envolve ainda experiências práticas de elaboração onírica, feitas no laboratório dos sonhos, onde a sugestão, a hipnose e técnicas de incubação onírica atuam. Num estágio mais avançado, o indivíduo aprende a relacionar seus sentimentos mais fortes e comuns com seus órgãos físicos, maneira esta profilática e curativa de se lidar com a somatização, fenômeno inconsciente e comum, capaz de gerar desde gripes até o câncer. Por meio da conscientização corporal e exercícios de vitalização psicorgânica, terapeuta e paciente podem juntos perceber melhor por onde devam começar a mexer nos complexos psiconeuróticos revelados. Musicoterapia, expressão artística, literatura e poesia, exercícios físicos e outros recursos são válidos para balancear dinamicamente todo o processo destinado a operar na mitologia pessoal, isto porque o aprendizado da alma não é linear, mas holográfico.
Toda a psicanálise cartesiana ensinada por Freud nada mais é do que uma excelente chave com a qual podemos melhor abrir as portas do inconsciente do que com as mãos vazias; mas decididamente, só o discurso dos consultórios muitas vezes se mostra insuficiente para lidar com todas as nuances que o caminho psicoterapêutico de autoconhecimento evoca. Difícil dizer se há sentido ou não na vida, mas vivê-la com encantamento será sempre melhor. E a mitologia pessoal empresta muito do prazer desta jornada iniciática, eterna senda onde sempre somos aprendizes entre ciprestes, esperando encontrar dentro da alma o verdadeiro mestre de nós mesmos.